O Espírito de Escravidão e de Adoção
“Não recebestes o espírito de escravidão para estardes outra vez com temor, mas recebestes o espírito de adoção pelo qual clamamos: Abba, Pai,” Rm 8.15
1. S. Paulo aqui fala aos que são filhos de Deus pela fé. “Vós” – diz ele – que na realidade são seus filhos, bebestes de seu Espírito; “não recebestes de novo o espírito de escravidão para temor,” mas, “porque sois filhos, Deus enviou o Espírito de seu Filho a vossos corações.” “Recebestes o espírito de adoção, pelo qual clamamos: Abba, Pai.”
2. O espírito de escravidão e temor está muitíssimo distante desse amável Espírito de adoção: os que são influenciados apenas pelo medo servil, não podem ser chamados “filhos de Deus,” embora alguns possam ser caracterizados como seus servos e não estejam “longe do Reino dos Céus.”
3. É, todavia, para temer que o grosso da humanidade, isto é, do que se chama mundo cristão, não tenha atingido a esse estado, mas esteja ainda muito aquém, “não tendo a Deus em seus pensamentos.” Poucos nomes podem ser apontados entre os que amam a Deus; em número um pouco maior são os que o temem; mas a maior parte não tem o temor de Deus diante de seus olhos, nem seu amor no coração.
4. Muitos dentre vós que, pela graça de Deus, agora participais de um melhor espírito, talvez vos lembreis do tempo em que éreis como incrédulos, estando também debaixo da mesma condenação. A princípio, entretanto, não o sabíeis, embora vivêsseis diariamente rolando sobre vossos pecados e em meio de vosso sangue; até que, no tempo devido, “recebestes o espírito de temor” (recebestes, porque também este é um dom de Deus); mais tarde o temor se dissipou e o Espírito de amor encheu vosso coração.
5. Aquele que se acha no primeiro estágio mental, sem temor e sem amor, é designado nas Escrituras como “homem natural;” do que se acha possuído do espírito de escravidão e temor, diz-se algumas vezes que está “debaixo da lei” (embora tal expressão com mais freqüência se refira ao que se acha debaixo da dispensação judaica, ou que se julgue obrigado a observar todos os ritos e cerimônias da lei mosaica); mas o que substituiu o espírito de temor pelo espírito de amor, está, como se diz com propriedade, “debaixo da graça.”
Visto que nos importa altamente conhecer de que espírito somos, proponho-me mostrar distintamente: primeiro, o estado do “homem natural;” segundo, o estado do que se acha “debaixo da lei;” e, em terceiro lugar, o estado do que se encontra “debaixo da graça.”
I
1. Vejamos, primeiro, o estado do homem natural. A Escritura o representa num estado de sono: a voz de Deus a ele dirigida é esta: “Desperta, tu que dormes.” Porque essa alma está em profundo sono: seus sentidos espirituais não se acham despertos; nem ao menos discernem espiritualmente o bem e o mal. Os olhos de seu entendimento estão cerrados, estão lacrados, e nada vêem: nuvens e trevas constantemente descansam sobre eles, visto que repousam no vale da sombra da morte. Além disto, não tendo janelas abertas para o conhecimento das coisas espirituais, cortadas estando todas as avenidas que lhe arejem a alma, esta permanece em espessa, palpável ignorância de tudo que mais lhe importa conhecer. É profundamente ignorante de Deus, nada sabendo dele como devia saber. É totalmente estranho à lei de Deus, à sua significação verdadeira, íntima e espiritual. Não tem conceito algum da santidade evangélica, sem a qual ninguém jamais verá a Deus, nem da felicidade que somente encontram aqueles cuja vida “está escondida com Cristo em Deus.”
2. Por essa mesma razão, por estar dormindo, tal homem se encontra, de algum modo, em repouso. Sendo cego, é também confiante: a cada passo diz consigo mesmo: “Espera; nenhum mal poderá acontecer-me.” As trevas que o rodeiam por todos os lados prendem-no dentro de uma espécie de paz, se a paz pode consistir em obras do diabo e pode conciliar-se com a mente terrena e diabólica. Ele não vê que está à borda do abismo; por isso não teme. Não pode temer o perigo de que não tem ciência. Não tem suficiente compreensão para temer. Por que não tem esse pecador medo de Deus? Porque se mostra totalmente ignorante de Deus, não só quando diz em seu coração: “Não há Deus,” ou que “Ele se assenta nos altos céus e não se humilha em interessar-se pelas coisas que se fazem na terra,” mas também quando se acomoda a tudo, a todos os intentos e propósitos epicuristas, e, afirmando que “Deus é misericordioso,” confunde e mistura tudo naquela pesada idéia de misericórdia: toda a santidade divina e o ódio essencial ao pecado; toda a justiça, sabedoria e verdade de Deus. Não sente horror à vingança enunciada contra os que não obedecem à bendita lei de Deus, porque não a compreende. Imagina que o principal ponto é fazer assim, estar externamente inculpável, não percebendo que essa inculpabilidade deva estender-se às tendências, desejos, pensamentos e impulsos do coração. De fato, tal homem imagina tenha cessado a obrigação moral; pensa que Cristo veio “destruir a lei e os profetas;” desceu para salvar o seu povo em seus pecados, e não de seus pecados; manifestou-se para levá-los aos céus sem santidade: e isto a despeito de suas próprias palavras: “Não passará da lei nem um só iota ou til, sem que tudo se cumpra,” e “Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no Reino dos Céus, mas o que faz a vontade de meu Pai que está nos céus.”
3. Esse pecador está seguro, porque é profundamente ignorante de si mesmo. Às vezes fala em “arrepender-se mais tarde;” não sabe, em verdade, exatamente quando, mas em qualquer tempo antes da morte, tendo como certo que isto está perfeitamente em suas mãos. Quem poderia impedir que ele o fizesse desde que o queira? Se firmou de uma vez certa resolução: nenhuma dúvida há de que bem a fará.
4. Essa ignorância nunca refulge tão fortemente como nos que são chamados homens de erudição. Se o homem natural for dessa categoria, falará largamente de suas faculdades racionais, da liberdade de sua vontade e da absoluta necessidade de tal liberdade, para que o homem se integre na condição de agente moral. Estuda, argüi e faz uma demonstração, segundo a qual todo homem pode fazer o que quiser; pode dispor de seu próprio coração para o bem, como para o mal, do modo que parecer melhor a seus próprios olhos. Assim o deus deste mundo estende um véu de cegueira sobre seu coração, temendo que, por qualquer meio, nele “possa brilhar a luz do glorioso Evangelho de Cristo.”
5. Da própria ignorância de si mesmo e de Deus muitas vezes resulta, do homem natural, uma espécie de alegria, rejubilando-se então à custa de sua própria sabedoria e bondade; e, aquilo que o mundo chama gozo, sempre está em suas mãos experimentar. Pode ter prazeres de várias modalidades, seja gratificando os desejos da carne, ou o desejo dos olhos, ou a vaidade da vida, principalmente se possuir grandes recursos materiais; se desfruta de fortuna opulenta, então pode “vestir-se de púrpura e linho finíssimo e banquetear-se esplendidamente todos os dias.” E à medida que faz o bem em atenção a si mesmo, dele os homens falarão certamente bem, dizendo: “É um homem feliz!” Porque esta é, na verdade, a total ventura terrena: vestir-se, fazer visitas, conversar, comer, beber e levantar-se a folgar.
6. Não é para surpreender que, em tais circunstâncias, alguém, intoxicado com os entorpecentes da lisonja e do pecado, imagine, em meio de outras alucinações, que anda em grande liberdade. Quão facilmente pode tal pecador persuadir-se de que está ao abrigo de todos os erros vulgares e de preconceitos de educação, julgando rigorosamente com acerto e evitando todos os extremos! “Sou livre – pode ele dizer – de todo o fanatismo das almas fracas e tacanhas; da superstição, moléstia dos tolos e cobardes, sempre justos em excesso; e do beatismo em que invariavelmente recaem os que não têm um modo de pensar livre e nobre!” E é certo também que tal pessoa é, ao mesmo tempo, livre da “sabedoria que vem de cima,” da santidade, da religião do coração, de toda a mente que havia em Cristo.
7. Por todo esse tempo ele é, todavia, servo do pecado. Comete pecado, em escala maior ou menor, dia após dia. Contudo não se perturba: “Não é escravo,” diz; não teme condenação. Contenta-se em afirmar (embora professe que a Revelação Cristã é de Deus), que “o homem é frágil. Todos nós somos fracos. Todo homem tem sua fraqueza.” Talvez cite a Escritura: “Salomão não diz que o justo cai em pecado sete vezes por dia? São hipócritas ou fanáticos, sem contestação todos os que pretendem ser melhores do que o próximo.” Se, nalguma ocasião, um pensamento fixo o tortura, ele logo o afasta, dizendo: “Por que havia eu de temer, desde que Deus é misericordioso e Cristo morreu pelos pecadores?” Assim, permanece o tal como escravo voluntário do pecado, contente com o cativeiro da corrupção; interna e externamente ímpio e satisfeito com a impiedade; não dominando o pecado, mas nem sequer lutando por dominá-lo, principalmente no tocante às culpas que mais facilmente o rodeiam.
8. Tal é o estado de todo “homem natural,” quer seja um grande, escandaloso transgressor, ou um pecador mais recatado e decente, que ainda conserve a forma da piedade, negando, porém, o poder dessa piedade. Como pode tal homem ser convencido de pecado? Como pode ser levado ao arrependimento, a estar debaixo da lei, a receber o espírito de escravidão para o temor? Esta é a questão que passaremos a considerar.
II
1. Por uma providência especial ou pela aplicação da Palavra com demonstração do Espírito, Deus toca o coração do que dorme nas trevas e na sombra da morte, terrivelmente sacudindo-o de seu sono e despertando-o para a consciência do perigo em que se acha. Talvez num momento, talvez por etapas, os olhos de seu entendimento se abrem, e agora pela primeira vez discerne (removido, em parte, o véu), o real estado em que se encontra. Horrível claridade se projeta sobre sua alma; luz que pareceria espadanar-se do abismo sem fundo, das profundezas inferiores, do lago de fogo que referve com enxofre. Finalmente vê que o amável, misericordioso Deus, é também “um fogo devorador;” que Ele é um Deus justo e terrível, retribuindo a cada um segundo suas obras, entrando em juízo com os ímpios acerca de toda palavra ociosa e de todas as imaginações frívolas de seu coração. Claramente o pecador agora percebe que o grande e santo Deus são “de olhos demasiadamente puros para que possam contemplar a iniqüidade;” que é vingador de todo aquele que se rebela contra o Eterno, e retribui ao mau segundo sua maldade; reconhece, afinal, que “terrível coisa é cair nas mãos do Deus vivo.”
2. A íntima, espiritual significação da lei de Deus começa agora a brilhar sobre o pecador, que percebe que “o mandamento é excessivamente amplo” e que coisa alguma existe que “se oculte à sua luz.” Convence-se de que cada parte do mandamento se relaciona, não meramente com o pecado exterior ou com a obediência desse gênero, mas com o que se passa no secreto recesso da alma, que nenhum olhar pode perscrutar, a não ser o olhar de Deus. Se ouve agora: “Não matarás,” Deus troveja: “Aquele que odeia a seu irmão é homicida;” “o que diz a seu irmão: Tolo, está sujeito à geena de fogo.” Se a lei diz: “Não adulterarás,” a voz do Senhor soa a seus ouvidos: “Aquele que olha para uma mulher com a intenção de a cobiçar, já no seu coração adulterou com ela.” E assim, no exame de cada ponto, ele acha ser a Palavra de Deus “viva e eficaz, e mais cortante do que qualquer espada de dois gumes.” Ela “fere até a divisão de sua alma e espírito, de suas juntas e medulas,” e o faz muito mais profundamente, quando o pecador está cônscio perante si mesmo de ter negligenciado tão grande salvação, de ter “calcado sob os pés o Filho de Deus,” que poderia tê-lo salvo de seus pecados, e de ter “reputado como profano o sangue do testamento,” considerando-o como “coisa vulgar,” incapaz de santificar.
3. E, sabendo que “todas as coisas estão nuas e descobertas” aos olhos daquele a Quem temos de dar contas, ele se vê a si mesmo nu, despido de todas as folhas de figueira que havia cosido para si, despojado de todas as pobres pretensões de religião ou virtude, e de suas infelizes desculpas de ter pecado contra Deus. Agora o pecador se vê como os antigos sacrifícios, τετραχηλισμενον, partidos em dois, como eram, do pescoço para baixo, de modo que tudo quanto há neles se torne notório. Seu coração se acha aberto – e ele o vê todo em pecado, “enganador mais do que todas as coisas, desesperadamente mau;” vê que é ao mesmo tempo corrupto e abominável, mais do que à língua é possível expressar; que nele não habita nenhum bem, mas somente injustiça e impiedade, já que todo movimento seu, toda inclinação e pensamentos, são integralmente maus e continuamente maus.
4. O pecador não somente vê, mas sente em si mesmo, por uma indescritível emoção de alma, que pelos pecados de seu coração, ainda que sua vida fosse sem mancha (o que não é o caso, nem pode sê-lo, visto que “uma árvore ruim não pode dar bons frutos”), merece ser sepultado no fogo que jamais se extingue. Sente que “o salário” da justa recompensa “do pecado,” de seus pecados acima de tudo, “é a morte,” ou seja, a segunda morte, a morte que não morre, a destruição no inferno do corpo e da alma.
5. Aqui termina seu alegre sonho, seu repouso ilusório, sua falsa paz, sua segurança vã. Seu gozo agora se esvai como névoa; os prazeres, outrora amados, agora não deleitam: perderam o sabor, e as doçuras nauseabundas passam a infundir repugnância. O pecador sente-se cansado de as suportar. As miragens da felicidade se dissipam e caem no esquecimento; e o ímpio, despojado de tudo, erra de um para outro lado, procurando repouso e sem nenhum descanso encontrar.
6. Cessado agora o efeito do fumo dos entorpecentes, o pecador experimenta toda a angústia de um espírito ferido. Sente que o pecado só deixa na alma andrajosa miséria, quer se trate de orgulho, ira ou maus desejos, ou de obstinação, malícia, inveja, vingança, ou qualquer outra espécie de transgressão; sente tristeza de alma por causa das bênçãos perdidas e da maldição que pesa sobre si; sente remorso por ter-se destruído a si mesmo e desprezado a misericórdia que devia ter tido para consigo próprio; sente temor, antevendo nitidamente a ira de Deus e suas conseqüências, a punição que justamente mereceu e que pende sobre sua cabeça; sente terror da morte, que para ele é a porta do inferno e a entrada à morte eterna; terror do diabo, o executor da ira e da justa vingança de Deus; terror dos homens, que, se lhe matassem o corpo, abismariam, dum só golpe, seu corpo e sua alma no inferno; terror que por vezes se eleva a tal altura, que sua pobre alma, pecadora e culpada, estremece a tudo, a coisa alguma, à sombra, ao leve sopro do vento. Às vezes o homem se torna absorto, parecendo “embriagado, embora não de vinho,” interrompendo a atividade da memória, do entendimento, de todas as faculdades naturais. Outras vezes chega à borda do desespero, de modo que, temendo até a mais leve menção da morte, pode, todavia, ser levado a lançar-se-lhe nos braços a cada momento, “preferindo à vida o auto-extermínio.” Bem pode tal homem uivar, como o da Antigüidade, em razão do desassossego de seu coração. Bem pode ele gritar: “O espírito do homem pode suportar suas fraquezas; mas o espírito ferido, que pode ele tolerar?”
7. Agora o pecador verdadeiramente deseja fugir ao pecado, começando por lhe dar combate. Mas embora lute com todas as forças, não pode vencer: o pecado é mais poderoso do que ele. Poderia escapar a salvo; mas está tão solidamente preso, que não pode livrar-se. Decide-se contra o pecado, estando, todavia, em pecados; vê a armadilha, aborrece a iniqüidade, mas termina correndo para ela. Por mais que sua confiante razão trabalhe, somente a culpa se lhe aumenta e lhe cresce a miséria! Tal é a liberdade de sua vontade: livre apenas para o mal, livre para “beber a iniqüidade como água;” livre para se apartar cada vez para mais longe do Deus vivo, para mais “atormentar o Espírito da graça!”
8. Quanto mais luta, esforça-se e trabalha por se livrar, mais sente as cadeias, as terríveis cadeias do pecado, com que Satanás o algema “e leva-o cativo à sua vontade”: é um escravo; e, embora murmure a cada passo, embora se rebele, não pode prevalecer. Ainda se encontra em cativeiro e temor, em razão do pecado; muitas vezes de algum pecado exterior, a que seja particularmente apegado, seja por natureza, hábito ou circunstâncias envolventes; mas, sempre, de algum pecado íntimo, alguma inclinação má ou afeição corrupta. Por mais que se irrite contra tal pecado, mais esse pecado se exalta; o pecador pode morder essa cadeia, mas não pode quebrá-la. Assim labuta ele sem fim, arrependendo-se e pecando, e outra vez arrependendo-se e tornando a pecar, até que o pobre, pecaminoso, desesperado, miserável ser esgota seu espírito – e pode apenas gemer: “Ó miserável homem que eu sou! Quem me livrará do corpo desta morte?”
9. Todo esse combate do que está “debaixo da lei,” debaixo do “espírito de temor e escravidão,” é belamente descrito pelo apóstolo no capítulo anterior, falando pela boca de um ímpio que desperta. “Eu – diz ele – em algum tempo, vivia sem lei” (versículo 9): tinha muita vida, sabedoria, fortaleza e virtude, segundo meu próprio pensar. “Mas quando o mandamento veio, o pecado reviveu, e eu morri”: quando o mandamento, em sua significação espiritual, veio a meu coração, com o poder de Deus; meu pecado inato foi instigado, agitado, inflamado, e toda minha virtude morreu. “E o mandamento, que fora ordenado para a vida, achei que foi para morte. Porque o pecado, tomando ocasião pelo mandamento, enganou-me e por ele me matou” (versículos 10, 11): recaiu sobre mim de improviso; matou todas as minhas esperanças e plenamente demonstrou que eu, em meio da vida, estava realmente morto. “Porque a lei é santa, e o mandamento é santo, e justo, e bom” (versículo 12): não lanço culpa sobre a lei, mas sobre a perversidade de meu próprio coração. Reconheci que “a lei é espiritual, mas eu sou carnal, vendido ao pecado” (versículo 4): agora vejo tanto a natureza espiritual da lei como meu próprio coração, carnal e diabólico, “vendido ao pecado,” totalmente escravizado (como escravo comprado por dinheiro, e que se acha absolutamente à disposição do senhor): “porque aquilo que faço, não o quero; e aquilo que quero, não o faço” (versículo 15): tal é a escravidão sob a qual eu gemo, tal a tirania de meu duro senhor. “O desejar está comigo; mas não posso fazer o bem que desejo. Porque o bem que eu desejo, não o faço; mas o mal que não quero, esse o faço.” (versículos 18, 19,). “Encontro a lei, um poder interior, que constrange, que, quando quero fazer o bem, o mal está presente comigo. Porque me deleito, ou consinto na lei de Deus, segundo o homem interior” (versículos 21, 22): em minha “mente;” (assim o apóstolo se explica nas palavras que imediatamente se seguem; e assim o εσw ανθρwπον, o homem interior, é entendido em todos os outros escritores gregos): “mas eu vejo outra lei em meus membros” outro poder que constrange, “guerreando a lei da minha mente” ou o homem interior, “e sujeitando-me ao cativeiro da lei,” ou domínio “do pecado” (versículo 23): atando-me, por assim dizer às rodas do carro triunfal de meu conquistador, coisa que minha alma na verdade aborrece. “Ó desgraçado homem que eu sou! Quem me livrará do corpo desta morte?” (versículo 24). Quem me libertará desta desesperada, mortificante vida, desta escravidão de pecado e miséria? Até que essa libertação se produza, eu próprio (ou, antes, aquele eu, αυτος εγw, aquele homem que estou agora personificando), “com a mente,” ou segundo o homem interior, “serve à lei de Deus;” minha mente, minha consciência está do lado de Deus, “mas com minha carne,” com meu corpo, “a lei do pecado,” (versículo 25), sou conduzido por uma força a que não posso resistir.
10. Que retrato vivo do homem que está “debaixo da lei!” – sentindo o peso que não pode alijar de si, suspirando pela liberdade, poder e amor, mas ainda em temor a escravidão, ate o momento em que Deus responda ao desgraçado que clama: “Quem me libertará” desta escravidão do pecado, deste corpo da morte? – “A graça de Deus, mediante Jesus Cristo, teu Senhor!”
III
1. É nesse momento que termina o miserável cativeiro: o pecador já não se encontra “debaixo da lei,” mas “debaixo da graça.” Passamos a considerar, em terceiro lugar, este estado – o estado do homem que achou graça ou favor à vista de Deus, o Pai, e que tem a graça ou poder do Espírito Santo reinando em seu coração; que recebeu, no dizer do apóstolo, o “espírito de adoção, pelo qual” ele agora clama: “Abba, Pai!”
2. “Clamou ao Senhor em sua aflição, e Deus o livrou do abatimento.” Seus olhos agora se abrem, de modo mui diverso, para ver o amável e gracioso Deus. Enquanto o homem ainda está falando: “Eu te imploro, mostra-me tua glória,” ouve uma voz a segredar-lhe no íntimo da alma: “Farei toda minha bondade passar diante de ti e proclamarei o nome do Senhor: serei gracioso para com quem eu quiser ser gracioso, e mostrarei misericórdia a quem eu quiser mostrar misericórdia.” E isto não se distancia muito do instante em que “o Senhor desça nas nuvens e proclame o nome do Senhor.” Então o pecador vê, mas não com olhos de carne e sangue, “o Senhor, o Senhor Deus, misericordioso e gracioso, longânimo e abundante em bondade e verdade, usando de misericórdia com milhares e perdoando iniqüidades, transgressões e pecados.”
3. Brilhante luz incide celestialmente sobre esta alma. O homem “olha para Aquele a quem havia traspassado;” e “Deus, que das trevas faz brilhar a luz, fulgura em seu coração.” Ele vê a luz do glorioso amor de Deus estampado na face de Jesus Cristo. Tem, pelo sentimento, uma divina “evidência das coisas que se não vêem,” mesmo das “coisas profundas de Deus;” a seus olhos se evidencia, mais particularmente, o amor de Deus, seu amor perdoador em relação ao que crê em Jesus. Robustecido pela visão, toda sua alma exclama: “Meu Senhor e meu Deus!” Porque vê todas as suas iniqüidades lançadas sobre aquele que “as levou em seu próprio corpo para o madeiro,” também contempla o Cordeiro de Deus tirando seus pecados. Quão claramente o pecador agora discerne que “Deus em Cristo estava reconciliando o mundo consigo mesmo, fazendo-se pecado por nós o que não conhecia pecado, para que pudéssemos ser feitos justiça de Deus, através dele,” sendo o pecador agora reconciliado com Deus, mediante o sangue do testamento!
4. Aí termina a culpa e o domínio do pecado. Agora pode o homem dizer: “Estou crucificado com Cristo; agora vivo, não eu, mas Cristo que vive em mim; e a vida que eu agora vivo na carne,” (neste corpo mortal), “vivo-a pela fé no Filho de Deus, que me amou e se deu a si mesmo por mim.” Aí termina o remorso, tristeza de coração, angústia de um espírito ferido: “Deus transforma sua tristeza em gozo.” Ele feriu e agora suas mãos curam. Aí também termina a escravidão ao medo, “porque seu coração permanece firme, crendo no Senhor.” Não mais pode temer a ira de Deus, pois sabe que essa ira dele se apartou, e encara o Senhor, não como um Juiz irado, mas como um Pai amantíssimo. Não pode temer o diabo, sabendo que este “não tem nenhum poder, salvo o que lhe for dado do Alto.” Não teme o inferno, herdeiro que é do Reino dos Céus; conseqüentemente, não teme também a morte, que, em outros tempos, e por muitos anos, lhe dera motivo para estar “sujeito ao cativeiro.” Ao contrário, sabendo que, “se a casa terrena deste tabernáculo for desfeita, ele tem uma edificação de Deus, uma casa não feita pelas mãos humanas, eterna, nos céus,” suspira profundamente, “desejando ser revestido daquela habitação que é do alto.” Deseja despojar-se desta casa terrena, para que a “mortalidade” possa ser “tragada pela vida;” sabendo que Deus “o reservou mesmo para isto, para o que também lhe deu o penhor de seu Espírito.”
5. “Onde há o Espírito do Senhor, aí há liberdade;” libertação, não somente da culpa e temor, mas do pecado, do mais pesado de todos os jugos, do mais degradante de todos os cativeiros. Agora seu trabalho já não é em vão. As algemas se quebraram e o homem se tornou livre, e, assim renovado, não apenas luta, mas também sai vitorioso; não combate somente, mas conquista e vence. “Para o futuro não servirá ao pecado.” (6.6ss) Está morto ao pecado e vivo para Deus; nem o pecado reina “sobre seu corpo mortal,” nem “ele obedece a este nos seus desejos.” Não “entrega seus membros como instrumentos de injustiça para o pecado, mas como instrumentos de justiça para Deus.” Porque, “libertado do pecado, ele se tornou servo da justiça.”
6. Assim, “tendo paz com Deus mediante nosso Senhor Jesus Cristo,” “regozijando-se na esperança da glória de Deus” e alcançando poder sobre todo o pecado, sobre todo desejo, inclinação, palavra e obra pecaminosa, ele é uma testemunha viva da “gloriosa liberdade dos filhos de Deus,” os quais, sendo participantes de igual fé preciosa, referem a uma voz: Recebemos o Espírito de adoção, pelo qual clamamos: Abba, Pai!”
7. É o Espírito que continuamente “opera neles, tanto o querer como o perfazer, de sua boa vontade.” É Ele que derrama em seu coração o amor de Deus e o amor de toda a humanidade, purificando seus corações do amor do mundo, da cobiça da carne, da cobiça dos olhos e da vaidade da vida. É por Ele que os conversos se libertam da ira e do orgulho, de todas as afeições vis e desordenadas. Em conseqüência, são igualmente libertados de todas as palavras e obras más, de toda a impiedade de conversação, nenhum mal fazendo ao homem e sendo zelosos de toda boa obra.
8. Em resumo: o homem natural não teme nem ama a Deus; o que está debaixo da lei teme-o; o que está debaixo da graça ama-o. O primeiro não discerne as coisas de Deus, mas anda em profundas trevas; o segundo vê a luz penosa do inferno; o terceiro vê a gloriosa luz do céu. O que dorme na morte tem uma falsa paz; o que é despertado não tem paz de modo nenhum; o que crê tem verdadeira paz – a paz de Deus, que lhe enche e governa o coração. O pagão, batizado ou não, tem uma liberdade ilusória, que é, na verdade, licenciosidade; o judeu, ou qualquer outro que esteja debaixo da dispensação judaica, está em dura, tremenda escravidão; o cristão desfruta da verdadeira, gloriosa liberdade dos filhos de Deus. O que ainda não está desperto, sendo filho do maligno, peca voluntariamente; o filho de Deus “não peca,” mas “guarda-se a si mesmo, e o maligno não lhe toca.” Concluindo: o homem natural nem conquista, nem combate; o que se acha debaixo da lei, luta com o pecado, mas não pode vencer; o que está debaixo da graça, luta e vence, pois que é “mais do que vencedor por aquele que o amou.”
IV
1. Desta clara exposição do tríplice estado do homem, o natural, o legal e o evangélico, resulta que não é bastante dividir a humanidade em sinceros e insinceros. O homem pode ser sincero em qualquer desses três estados: não somente quando tenha o “Espírito de adoção,” mas ainda mesmo quando tenha o “espírito de escravidão para o temor,” e até mesmo não tendo nem este temor, nem amor. Porque, indubitavelmente, pode haver pagãos sinceros, como sinceros judeus ou cristãos. Tal circunstância não prova, de modo nenhum, que o homem esteja, só por ser sincero, em estado de ser aceito por Deus.
“Examina-te, pois, a ti mesmo,” não para saberes se és sincero, mas para verificares se “estás na fé.” Examina detidamente (porque isto te importa muito), qual é o espírito dominante de tua alma. É o amor de Deus? É o temor de Deus? Ou não é nem um nem outro sentimento? Não será antes o amor do mundo, o amor do prazer ou do lucro, da vida fácil ou da reputação ilibada? Se assim é, não chegaste sequer à condição de judeu. Não passas de um pagão. Tens o céu em teu coração? Tens o Espírito de adoção, por ele clamado: “Abba, Pai!” – ou clamas por Deus “como falando desde o ventre do abismo,” dominado pela tristeza e pelo pavor? Quem sabe se és estranho a todo este assunto, e não podes sequer imaginar o que quero dizer? Pagão, tira a máscara! Tu jamais te revestiste de Cristo! Descobre-te! Olha para os céus e confessa diante daquele que vive eternamente, que tu não tens parte entre os filhos ou servos de Deus!
Homem, quem quer que sejas, cometes pecado ou não o cometes? Se o cometes, faze-o voluntária ou involuntariamente? Em qualquer caso, Deus já te disse a quem pertences: “O que comete pecado é do diabo.” Se o cometes voluntariamente, tu és seu servo fiel: ele não deixará de recompensar teu trabalho; se pecas involuntariamente, ainda és servo do diabo. Que Deus te liberte de suas mãos!
Diariamente combates contra o pecado – e sois diariamente mais do que vencedor? Reconheço-te como filho de Deus. Oh! Persevera em tua gloriosa liberdade! Estás combatendo, mas não vencendo; lutando pelo domínio, sem seres capaz de o atingir? Então ainda não és crente em Cristo; prossegue, todavia, e conhecerás o Senhor. Tu não estás pelejando, mas levando vida folgada, indolente e luxuosa? Oh! Como ousas tu usurpar o nome de Cristo, somente para o tornar odioso entre os pagãos? Desperta, tu que dormes! Invoca ao teu Deus, antes que sejas tragado pelo abismo!
2. A razão pela qual tantos pensam de si mesmos mais altamente do que convém, e não discernem em que condição verdadeiramente se acham, é que esses vários estados de alma com freqüência se misturam, encontrando-se, em certa medida, em uma só e mesma pessoa. Assim, a experiência mostra que o estado legal, ou o estado de temor freqüentemente se confunde com o estado natural, pois que são poucos os homens que se encontram profundamente adormecidos no pecado; ao contrário, o que muitas vezes acontece, é que eles estejam mais ou menos despertos. Como o Espírito de Deus “não espera pelo chamado do homem,” assim, algumas vezes, Ele será ouvido. O Espírito coloca-os em temor, de modo que, em qualquer tempo, os pagãos ao menos “reconheçam que são apenas homens.” Sentem o peso do pecado e profundamente desejam fugir à ira vindoura. Mas isto não dura muito tempo: raramente toleram que as setas da convicção se aprofundem em sua alma; bem depressa sufocam a graça de Deus e voltam a revolver-se no lamaçal.
Do mesmo modo, o estado evangélico, ou estado de amor, freqüentemente se mistura ao estado legal. Poucos são os que, tendo o espírito de escravidão e temor, permanecem sempre sem esperança. O sábio e gracioso Deus raramente permite que isto aconteça, “porque Ele se lembra de que somos somente pó” e “não deseja que a carne falhe diante dele ou desfaleça o espírito que Ele fez.” Assim, no tempo favorável, Deus projeta um raio de luz sobre os que estão em trevas, – faz sua bondade passar diante deles e mostra-lhes que é um “Deus que ouve às orações.” Os homens vêem a promessa, que é feita através de Jesus Cristo, embora esteja distante, e por ela são encorajados a “correr com paciência a carreira que lhes está proposta.”
3. Outra razão pela qual muitos se iludem, é o não considerarem quão longe pode o homem ir, permanecendo, entretanto, em estado natural ou, na melhor hipótese, em estado legal. O homem pode ser de caráter compassivo e benévolo; pode ser afáveis, corteses, generosos, amáveis; pode ter, em certa medida, humildade, paciência, temperança e multas outras virtudes morais. Pode sentir grande desejo de abandonar todos os vícios e galgar os degraus mais eminentes da virtude. Pode abster-se de muitos males; talvez se abstenha mesmo de tudo que seja contrário à justiça, à misericórdia e à verdade. Pode fazer grande cópia de bem – alimentar o faminto, vestir o nu, amparar a viúva e os órfãos. Pode assistir ao culto público, usar da oração em particular, ler muitos livros devocionais e ainda, com tudo isso, pode ser um simples homem natural, não se conhecendo a si mesmo nem conhecendo a Deus, alheio por igual ao espírito de temor e ao espírito de amor, não tendo arrependimento e não crendo no Evangélho.
Suponhamos que a tudo isso fosse adicionada uma profunda convicção de pecado, com grande temor da ira de Deus, veemente desejo de proscrever todo pecado e de cumprir toda justiça, freqüente regozijo na esperança e toques de amor lhe deslizando repetidamente sobre a alma: nem assim se prova estar esse homem debaixo da graça, ter verdadeira fé, viva e cristã, a não ser que o Espírito de adoção esteja em sua alma; a não ser que ele possa continuamente clamar: “Abba, Pai!”
4. Acautela-te, pois, tu que és chamado pelo nome de Cristo, para que não fiques aquém de tua alta vocação. Guarda-te de descansares, seja no estado natural, como acontece com muitos que são reputados bons cristãos; seja no estado legal, em que muitos homens, altamente estimados nos meios sociais, sentem-se felizes em viver e morrer. Deus te preparou melhores coisas, se prosseguires firme até alcançá-las. Não foste chamado para temer e tremer, como os demônios, mas para te regozijares em amor, como os anjos de Deus. “Amarás o Senhor teu Deus de todo teu coração, de toda tua alma, de toda tua mente e de todas as tuas forças.” “Regozijar-te-ás sobremodo;” “orarás sem cessar;” “em todas as coisas darás graças.” Farás a vontade de Deus na terra, assim como é feita nos céus. Oh! Experimenta qual seja “a boa, aceitável e perfeita vontade de Deus!” Apresenta-te a ti mesmo como “um vivo sacrifício, santo e aceitável a Deus.” “Conserva-te no ponto a que chegaste.” Avança “para as coisas que estão na frente,” até que “o Deus de paz te faça perfeito em toda boa obra, – operando em ti aquilo que é agradável à sua vista, mediante Jesus Cristo, ao qual seja a glória pelos séculos dos séculos! Amém.”