A Justificação pela Fé
“Ao que não trabalha, mas crê naquele que justifica ao ímpio, a sua fé lhe é imputada para justiça,” Rm 4.5
1. Como possa o pecador ser justificado perante Deus, o Senhor e Juiz de todos, é uma questão de invulgar importância para todos os homens. Ela envolve o fundamento de todas as nossas esperanças, tanto mais que, estando nós em inimizade com Deus, não pode haver verdadeira paz, nem sólida alegria, quer no tempo, quer na eternidade. Que paz pode haver, quando nosso próprio coração nos condena e, o que é muito mais, condena-nos aquele que “é maior do que nosso coração e conhece todas as coisas”? Que alegria serena, seja neste mundo ou no mundo por vir, pode haver, enquanto “a ira de Deus pende sobre nós”?
2. E quão pouco, entretanto, se tem compreendido esta importante questão! Que noções confusas muitos têm formulado no tocante a ela! Na verdade, não apenas confusas, mas com freqüência profundamente falsas, tão contrárias à verdade como a luz se distancia das trevas; noções absolutamente inconsistentes com os Oráculos de Deus e com toda a analogia da fé. E assim, errando quanto ao próprio fundamento, eles não poderiam logicamente construir, pelo menos não poderiam construir edifício de “ouro, prata ou pedras preciosas,” capaz de resistir quando provado pelo fogo, mas apenas casebres de “feno e palha,” nem aceitáveis à vista de Deus, nem de real proveito ao homem.
3. Para fazer justiça, pelo que me toca, à vasta importância do assunto; para salvar os que sinceramente buscam a verdade da “vã disputa e contenda de palavras;” para esclarecer a confusão de pensamento em que tantos se têm abismado, em razão da discórdia existente, e para lhes dar verdadeiras e justas concepções acerca desse grande mistério de piedade, empreendo mostrar:
Primeiro, qual é o fundamento geral de toda a doutrina da justificação;
Segundo, o que é a justificação;
Terceiro, quais são os justificados; e
Quarto, em que termos são eles justificados.
I
Quero mostrar, primeiro, qual é o fundamento geral de toda a doutrina da justificação.
1. O homem fora feito à imagem de Deus: santo como é santo o que o criou; misericordioso como o Autor de tudo é misericordioso; perfeito como seu Pai celestial é perfeito. Como Deus é amor, assim o homem, estando em amor, habita em Deus e Deus nele. Deus fê-lo ser a “imagem de sua própria eternidade,” um retrato incorruptível do Senhor da glória. Era, conseqüentemente, puro como Deus é puro, livre de qualquer nódoa de pecado. Não conhecia o mal de qualquer espécie ou vulto, mas era interna e externamente impecável e limpo. “Amava ao Senhor seu Deus de todo seu coração, e de toda sua mente, e alma, e forças.”
2. Ao homem, reto e perfeito, Deus deu uma lei perfeita, exigindo plena e completa obediência a ela. Deus requeria inteira obediência a cada disposição legal, e isto sem intermitências, desde o momento em que o homem se tornara em alma vivente, até o tempo em que terminasse sua prova. Nenhuma permissão se deu à menor falha. E, na verdade, não era necessária semelhante permissão, estando o homem preparado para cumprir a tarefa imposta e perfeitamente provido de toda boa palavra e obra.
3. A lei de amor, escrita em seu coração, (contra a qual, talvez, não pudesse o homem atentar diretamente), pareceu bem à soberana sabedoria de Deus aduzir uma lei positiva: “Não comerás do fruto da árvore que cresce em meio do jardim,” anexando a esta lei esta penalidade: “No dia em que comeres, certamente morreras.”
4. Tal era, pois, o estado do homem no paraíso. Pelo amor espontâneo e gratuito de Deus, era santo e feliz, conhecendo, amando e gozando a Deus, que é, em substância, a vida eterna. Nessa vida de amor o homem permaneceria para sempre, se continuasse a obedecer a Deus em todas as coisas; mas, se num ponto desobedecesse, perderia tudo. “Nesse dia,” disse o Senhor, “tu certamente morrerás.”
5. O homem desobedeceu a Deus. “Comeu da árvore a respeito da qual Deus recomendara, dizendo: Tu não comerás dela.” Naquele dia ele foi condenado pelo justo juízo de Deus. Começou a vigorar então a sentença que fora previamente intimado ao primeiro homem. No momento em que tocou aquele fruto, nesse momento morreu. Sua alma morreu; foi separada de Deus, isto é, cortada da comunhão divina, fora da qual o espírito não tem mais vida do que a tem o corpo: quando separado da alma que o vivifica. Seu corpo, do mesmo modo, tornou-se corruptível e mortal; deste modo a morte igualmente se instalou no mundo. E, morto em espírito, morto para Deus, morto em pecado, ele se abismou na morte eterna, na destruição do corpo e da alma, em meio do fogo que jamais se extingue.
6. Assim, “por um homem entrou o pecado no mundo e pelo pecado a morte. E a morte passou a todos os homens,” visto estarem estes compreendidos no pai comum e representante de todos nós. Por isso, “através da ofensa de uns,” todos estão mortos, mortos para Deus, mortos em pecado, habitando uns corpos corruptíveis, mortais, prestes a ser dissolvido e sob sentença de morte eterna. Porque, como pela desobediência de um só homem “todos se fizeram pecadores,” assim, “pela ofensa de um, o juízo veio sobre todos os homens para a condenação” (Rm 5.12).
7. Nesse estado nos encontrávamos, nós e toda a humanidade, quando “Deus de tal maneira amou ao mundo, que lhe deu seu único Filho, para que não pereçamos, mas tenhamos a vida eterna.” Na plenitude do tempo ele se fez homem, outro Cabeça da humanidade, um segundo pai de todos e representante de toda a raça. Como tal “levou nossas dores,” “tendo o Senhor feito cair sobre ele as iniqüidades de todos nós.” Então foi “ferido pelas nossas transgressões e quebrantado pelas nossas iniqüidades.” “Fez de sua alma uma oferenda pelo pecado”: derramou seu sangue pelos transgressores: levou nossos pecados em seu próprio corpo para o madeiro” de modo que pelas suas feridas fôssemos curados. Por aquela única oblação de si mesmo, oferecida uma vez, ele nos resgatou e a toda a humanidade, tendo por esse meio “feito pleno, perfeito e suficiente sacrifício e satisfação pelos pecados de todo o mundo.”
8. Em atenção ao fato de ter o Filho de Deus “provado a morte por todos os homens,” Deus agora “reconciliou o mundo consigo mesmo, não lhe imputando” seus primitivos “delitos.” E deste modo, “como pela ofensa de um o juízo veio sobre todos os homens para a condenação, assim, pela justiça de um, veio o livre dom sobre todos os homens para a justificação.” Assim é que, em atenção ao seu bem amado Filho, ao que ele fez e sofreu por nós, Deus agora outorga, sob uma única condição (que ele próprio também nos habilita a preencher), a remissão do castigo devido aos nossos pecados, para restaurar-nos em sua graça e para reconduzir nossas almas mortas à vida espiritual, como penhor da vida eterna.
9. Este é, pois, o fundamento geral de toda a doutrina da justificação. Pelo pecado do primeiro Adão, que não somente era o pai, mas também o representante de todos nós, decaímos da graça; tornamo-nos todos filhos da ira, ou, na expressão do apóstolo, “o juízo veio sobre todos os homens para a condenação.” Da mesma forma, mediante o sacrifício pelo pecado, feito pelo segundo Adão, como nosso representante, Deus tão perfeitamente se reconciliou com todo o mundo, que com ele fez um novo pacto, de modo que, uma vez preenchida a simples condição imposta, “não há mais condenação” para nós, mas “somos justificados livremente pela sua graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus.”
II
1. Mas, que é ser justificado? Que é justificação? Este é o segundo ponto que me proponho ventilar. Das observações que precederam, é evidente que a justificação não consiste em ser o homem desde agora transformado em justo. Isto é santificação, que por sua vez vem a ser na verdade, em alguma medida, o fruto imediato da justificação, sem deixar de ser, não obstante, outro dom de Deus, de natureza totalmente diversa. Um implica no que Deus faz por nós através de seu Filho; o outro se prende ao que o mesmo Deus opera em nós pelo seu Espírito. Embora haja algumas passagens raras em que o termo justificado ou justificação seja usado em sentido demasiadamente amplo para também incluir a santificação, todavia, no uso corrente, essas doutrinas se apresentam suficientemente discriminadas, tanto nos escritos de S. Paulo como nos de outros autores inspirados.
2. Nem a justificação é aquele conceito rebuscado, segundo o qual ela consiste no subtrair-se o homem à acusação, notadamente de Satanás, idéia essa que não é suscetível de ser provada facilmente por nenhum texto dos Santos Escritos. Em toda a matéria bíblica relacionada com o assunto, como acima se apresenta, nem o acusador, nem a acusação aparecem aí envolvidos. É verdade que não se pode negar que existe um “acusador” dos homens, enfaticamente chamado assim; mas não parece que o grande apóstolo tenha feito, de qualquer modo, a mínima alusão a isso, ao longo de tudo quanto escreveu acerca da justificação, seja em Romanos, seja em Gálatas.
3. Também é muito mais fácil tomar como assente do que provar por qualquer testemunho claro das Escrituras, que a justificação consista em libertar-nos da acusação contra nós levantada pela lei: afinal, este modo de falar, artificial e forçado, significa mais ou menos que, conquanto tenhamos transgredido a lei de Deus e tenhamos, por esta causa, merecido a condenação ao inferno, Deus não inflige aos que são justificados a punição merecida.
4. Menos ainda a justificação implica em que Deus seja enganado acerca dos que são justificados por Ele, pensando porventura o Senhor serem os justificados aquilo que realmente não são, ou reputando-os o contrário do que em realidade são. Isto equivale, pelo menos, a dizer que Deus julga, em relação a nós, de modo contrário à natureza real das coisas: que Ele nos tem como melhores do que somos, ou acredita-nos justos, quando somos, na verdade, ímpios. Certamente não é assim. O juízo do sapientíssimo Deus é sempre conforme a verdade. Nem pode jamais ser consistente com sua sabedoria infalível, pensar que eu seja inocente, julgar que eu seja justo ou santo, porque outro assim o seja. Deste modo, é tão possível confundir-me com Cristo como com Davi ou Abraão. Que cada homem, a quem Deus tenha concedido entendimento, analise essas coisas sem preconceitos: neste caso, não se poderá deixar de concluir que tal idéia de justificação não se concilia com a razão, nem com as Escrituras.
5. A clara noção bíblica de justificação é o perdão de pecados. É o ato de Deus Pai, pelo qual, em atenção a propiciação feita pelo sangue de seu Filho, “mostra sua justiça (ou misericórdia), pela remissão dos pecados passados.” Esta é a concepção natural, lógica, apresentada por S. Paulo através de toda a epístola. Assim é que ele a expõe, principalmente neste e no capítulo seguinte. Diz ele: “Bem-aventurados aqueles cujas iniqüidades são perdoadas e cujos pecados são cobertos: bem aventurado é o homem a quem o Senhor não imputará pecado.” Ao que é justificado ou perdoado, “Deus não imputará pecado” que acarrete sua condenação. Deus não o condenará por aquela razão, nem neste mundo, nem no mundo vindouro. Seus pecados, todos os seus pecados anteriores, – por pensamentos, palavras e obras, – são cobertos, são cancelados, não serão lembrados nem argüidos contra ele: são como se não existissem. Deus não submeterá aquele pecador ao sofrimento merecido, porque o Filho de seu amor sofreu por ele. A essa altura somos “aceitos através do Bem-amado,” “reconciliados com Deus mediante seu sangue;” Deus nos ama, abençoa-nos e guarda-nos para o bem, tratando-nos como se nunca tivéssemos pecado. Parece que, na verdade, o apóstolo estende, em algumas passagens, a significação da palavra, dizendo, por exemplo: “Não os ouvintes da lei, mas os obradores da lei, serão justificados.” Aí parece que ele relaciona nossa justificação com a sentença do grande Dia. E isso também faz, inquestionavelmente, o próprio Senhor nosso, quando diz: “Por tuas palavras serás justificados,” provando com isto que “de toda palavra ociosa que os homens disserem, darão contas no dia de Juízo;” mas dificilmente encontraremos outra passagem de S. Paulo em que a palavra figure nesse sentido amplíssimo. É evidente que tal conceito não ressalta do teor geral de seus escritos, e menos ainda isto se dá no texto que temos diante de nós, que evidentemente fala, não dos que já “terminaram sua carreira,” mas dos que a iniciam agora, dos que começam a “correr a carreira que lhes está proposta.”
III
1. Este é, entretanto, o terceiro ponto a ser considerado, isto é: Quais são os justificados? E o apóstolo expressamente responde: o ímpio: “Ele (Deus) justifica o ímpio,” o ímpio de toda espécie e categoria; e ninguém, senão o ímpio. Como “os justos não precisam de arrependimento,” assim não tem necessidade de perdão. Somente aos pecadores cabe o perdão; só o pecado admite o ser perdoado. O perdão tem, pois, imediata relação com o pecado, e, neste sentido, nenhuma outra relação existe. É para com nossa injustiça que o Deus perdoador é misericordioso; é de nossa iniqüidade que Ele “não se lembra mais.”
2. Parece que isto não é tomado na devida consideração por aqueles que tão veementemente afirmam que o homem deve ser santificado, isto é, santo, antes que seja justificado; aquelas verdades são de todo postas à margem, especialmente por aqueles que afirmam que a santidade universal, ou obediência deve preceder a justificação, (a menos que eles queiram referir-se à justificação do último dia, o que está inteiramente fora do presente debate). Ao contrário disto, aquela suposição é não só francamente impossível (porque, onde não há amor de Deus não há santidade, e não há amor de Deus a não ser no sentido de seu amor para conosco), mas também grosseiramente, visceralmente absurda e contraditória consigo mesma. Porque não é o santo, mas o pecador, que é perdoado, e perdoado na sua qualidade de pecador. Deus não justifica os justos, mas os maus; não os que já são santos, mas os ímpios. Sob que condições Deus realiza isto, veremos prontamente; mas, quaisquer que sejam essas condições, entre elas não figura, decididamente, a santidade. Afirmar a precedência da santidade é dizer que o Cordeiro de Deus tira somente os pecados que previamente tenham sido tirados.
3. O Bom Pastor procura e salva somente aqueles que dantes já tinham sido encontrados? Não. Ele busca e salva o que se havia perdido; perdoa àqueles que necessitam de sua misericórdia perdoadora; salva da culpa do pecado – e ao mesmo tempo do domínio deste – os pecadores de toda espécie, de todo gênero; os homens que até então eram ímpios; as pessoas em quem não havia o amor do Pai; e, conseqüentemente, em quem não habitava nenhuma bondade, nenhum bem e nenhum traço de caráter verdadeiramente cristão, mas tudo quanto é mau e abominável, – orgulho, ira, amor ao mundo, os frutos genuínos da mente carnal, que é “inimizade contra Deus.”
4. Os que estão enfermos, sentindo o peso insuportável dos pecados, são os que necessitam de médico; os que são culpados, os que gemem sob a ira de Deus, são os que precisam de perdão. Os que já estavam anteriormente condenados, não só por Deus, mas também pela própria consciência, como por um milhar de testemunhas de toda sua iniqüidade, – seja em pensamento, palavra ou obra, – clamam com força por aquele que, mediante a redenção que há em Jesus, “justifica o ímpio,” o ímpio “que não faz boas obras,” que nenhuma obra de justiça faz antes de ser justificado, que não faz qualquer coisa que seja boa, verdadeiramente virtuosa ou santa, mas somente pratica o mal, e isto continuamente. Seu coração é necessária, essencialmente mau, até que o amor de Deus nele seja derramado. Enquanto a árvore for má, assim serão os seus frutos, “porque a árvore má não pode dar bons frutos.”
5. Se se objetar: “Bem; mas o homem, antes de ser justificado, pode saciar o faminto ou vestir o nu, e isto constitui boas obras,” – fácil será a resposta: ele pode fazer essas obras antes de ser justificado, e elas são, em certo sentido, “boas obras”: são “boas e proveitosas ao homem”: Mas não se segue que elas sejam, estritamente falando, boas em si mesmas, ou boas à vista de Deus. Todas as obras verdadeiramente boas (para usar as palavras de nossa Igreja), seguem a justificação; e assim são boas e “aceitáveis a Deus em Cristo,” porque “provêm de uma fé verdadeira e viva.” Por igual razão, todas as obras feitas antes da justificação não são boas, no sentido cristão, pelo fato de não resultarem da fé em Jesus Cristo (embora elas possam provir de alguma espécie de fé em Deus), “ou, melhor, porque não são feitas como Deus quisera e determinara “fossem elas feitas, não duvidamos” (por mais estranho que isto pareça) “que tenham a natureza de pecado.”
6. Talvez que os que duvidem disto não tenham considerando atentamente o peso da razão invocada em abono da tese, segundo a qual as obras feitas antes da justificação não podem ser verdadeira e propriamente boas. O argumento corre nas seguintes linhas: Nenhuma obra pode ser boa, desde que não seja feita como Deus quer e ordena que ela se faça: mas obra alguma, feita antes da justificação, faz-se como Deus quer e ordena que se faça; logo, nenhuma obra feita antes da justificação é boa. A primeira proposição é evidente por si mesma e a segunda – que obra alguma, feita antes da justificação, faz-se como Deus quer e ordena que seja feita, resultará igualmente clara e inegável, se bem considerarmos o assunto. Deus deseja e manda que todas as nossas obras sejam feitas em caridade (εν αγαπη) em amor, naquele amor de Deus que produz amor a toda a humanidade. Mas nenhuma de nossas obras pode ser feita nesse amor, enquanto o amor do Pai (de Deus, como nosso Pai), não estiver em nós; e este amor não pode existir em nós até que recebamos o “Espírito de adoção, clamando em nossos corações: Abba, Pai!” Se Deus, pois, não justifica o ímpio e o que, (neste sentido), não produz obras; então Cristo morreu em vão e, não obstante sua morte, nenhuma carne será justificada.
IV
1. Mas, em que termos é então justificado aquele que, além de ímpio, não possuía obras até o tempo da justificação? Sob uma só condição, que é a fé: que ele creia “no que justifica o ímpio.” E “aquele que crê não é condenado,” pois que “passou da morte para a vida.” “Porque a justiça (ou misericórdia), de Deus é pela fé em Jesus Cristo, para todos e sobre todos os que crêem: ao qual Deus enviou como propiciação, mediante a fé em seu sangue, para que Ele possa ser justo e (consistentemente com sua justiça), Justificador daquele que crê em Jesus.” “Disto concluímos que o homem é justificado pela fé, sem as obras da lei,” sem prévia obediência à lei moral, que ele, na verdade, até agora não pôde cumprir. Que seja à lei moral, e somente esta, a que é ali mencionada, resulta evidente das palavras que se seguem: “Porventura invalidamos a lei por causa da fé? De modo nenhum. Antes, estabelecemos a lei.” Que espécie de lei podemos estabelecer pela fé? Não será a lei ritual, nem a lei cerimonial de Moisés, mas a grande, imutável lei do amor, o santo amor de Deus e de nosso próximo.
2. A fé é, em geral, a divina, sobrenatural ελεγχος, evidência ou convicção “das coisas não vistas,” não perceptíveis aos sentidos corporais, sejam passadas, futuras ou espirituais. A justificação pela fé implica, não só numa divina evidência ou convicção de que “Deus em Cristo estava reconciliando o mundo consigo mesmo,” mas também numa confiança viva em torno do fato de haver Cristo morrido por meus pecados, já que Ele me amou e se entregou por mim. Qualquer que seja o tempo em que o pecador assim creia, esteja ele na primeira infância, no vigor dos anos ou na velhice encanecida, Deus justifica o ímpio: Deus, por amor de seu Filho, perdoa e absolve o homem que até então nada pudera apresentar de bom. O arrependimento é, na verdade, Deus quem lho dá previamente; mas esse arrependimento é, nada mais, nada menos, do que um profundo sentimento da ausência de todo bem e da presença de todo mal. E qualquer que seja o bem que ele tenha a apresentar, ou que faça a partir da hora em que primeiro crê em Deus, através de Cristo, certo é que a fé não encontra esse bem, mas é ela que o traz. O bem é o fruto da fé. Primeiro a árvore se torna boa; depois os frutos se fazem bons.
3. Não se pode melhor descrever a natureza dessa fé do que pelas palavras de nossa Igreja: “O único instrumento de salvação (de que a justificação é um ramo), é a fé, isto é, uma segura confiança em que Deus perdoa e quer perdoar nossos pecados; em que Ele nos recebe de novo em seu favor, pelos méritos da paixão e morte de Cristo. Devemos ter, entretanto, todo cuidado em não cairmos em falta para com Deus, professando uma fé inconstante e variável: Pedro, indo a Cristo sobre as águas e vacilando na fé, correu o risco de afogar-se; assim, se começamos a hesitar e duvidar, é muito para temer que naufraguemos como Pedro, não nas águas, mas no abismo sem fundo do inferno de fogo,” (Segundo Sermão sobre a Paixão.)
“Tem, pois, uma fé segura e constante, não só em que a morte de Cristo é proveitosa a todo o mundo, mas em que Ele fez um pleno e suficiente sacrifício por ti, uma perfeita purificação dos teus pecados, de modo que possas dizer com o apostolo que ele te amou e se entregou por ti. Isto é fazer de Cristo tua possessão e aplicar seus méritos a ti mesmo.” (Sermão sobre o Sacramento, Primeira Parte).
4. Afirmando que essa fé é o termo ou condição de justificação, quero dizer, primeiro, que sem ela não há justificação. “Aquele que crê não é condenado” e, não crendo, essa condenação não pode ser removida, mas a “ira de Deus permanece sobre ele.” Como “não há outro nome dado debaixo dos céus,” além do de Jesus de Nazaré; como não há nenhum outro mérito pelo qual o pecador condenado possa ser salvo da culpa do pecado, – assim, não há outro caminho de obtenção de uma parte de seu mérito, a não ser pela fé em seu nome. Deste modo, enquanto não temos essa fé, somos, “estrangeiros ao pacto da promessa,” estamos “alienados da comunidade de Israel e sem Deus neste mundo.” Quaisquer que sejam as virtudes (assim chamadas) que o homem possa ter, – falo daqueles a quem o Evangelho foi pregado, porque, “que tenho a fazer ou julgar” acerca dos que são de fora? – quaisquer que sejam as boas obras (assim reputadas), que ele possa apresentar, isto não lhe aproveita: continua sendo filho da ira, permanece debaixo da maldição, até que creia em Jesus.
5. A fé é, pois, a condição necessária da justificação; ainda mais: é a única condição necessária. Este é o segundo ponto que merece ser cuidadosamente observado: no próprio momento em que Deus concede a fé (porque esta é dom de Deus) ao “ímpio,” que “não faz obras,” essa “fé lhe é imputada como justiça.” Ele não tem justiça de espécie alguma que preceda à fé; não tem sequer a justiça negativa, ou inocência. Mas a “fé lhe é imputada como justiça,” no próprio momento em que crê. Não que Deus julgue (como já foi observado), que o pecador seja o que não é; mas, como “Ele fez a Cristo pecado por nós,” isto é, tratou-o como pecador, punindo-o por nossas culpas, somos reputados como justos desde o momento em que nele cremos: Deus não nos pune por nossos pecados, mas trata-nos como se fôramos inculpáveis e justos.
6. A dificuldade de se dar assentimento a esta proposição – que a fé seja a única condição da justificação – parte do fato de não ser bem compreendida. Pelos termos da proposição enunciada, queremos afirmar que a fé é a única coisa sem a qual ninguém será justificado; a única coisa que é imediata, indispensável e absolutamente requerida para o perdão. Como, por um lado, o homem, embora possua todas as coisas, não pode ser justificado se lhe faltar à fé, assim, por outro lado, ainda que se presuma que lhe falte tudo, se tiver, todavia, a fé, não pode deixar de ser justificado. Suponha-se um pecador, não importa que espécie, no pleno sentido de sua total impiedade, da sua mais completa incapacidade de pensar, de falar e de fazer o bem, e de seu absoluto merecimento do inferno de fogo; suponha-se que esse pecador, digo, eu, sem auxílio e sem esperança, entregue-se totalmente à misericórdia de Deus em Cristo (o que ele não pode, na realidade, fazer, a não ser pela graça do mesmo Deus): quem pode duvidar de que tal pecador seja perdoado nesse mesmo instante? Que se pode dizer seja ainda indispensavelmente necessário para que esse pecador seja justificado? Agora, se houve um exemplo tal desde o começo do mundo (e não tem havido, não há, dez mil vezes dez mil casos dessa natureza?) claramente resulta que a fé é, no sentido acima expresso, a única condição de justificação.
7. Não convém que os pobres vermes, culpados, pecaminosos, que de graça recebem todas as bênçãos de que desfrutam (desde a menor gota de água que lhe umedece a língua até as riquezas imensas da glória eterna), tudo por mero favor e não como direito, peçam a Deus as razões de sua conduta. Não nos faz honra o interrogarmos aquele que “não dá contas de nenhum de seus caminhos,” inquirindo: “Por que fizeste da fé a condição, a única condição da justificação? Por Que decretaste: o que crê, e somente este, será salvo?” Este é justamente o ponto sobre que S. Paulo tão fortemente insiste no nono capítulo desta Epístola, isto é, que os termos de perdão e aceitação dependem, não de nós, mas daquele que nos chamou; que não há injustiça em Deus, quando estabelece suas condições, não de acordo com os nossos, mas de acordo com seus próprios desejos. Deus pode mui justamente dizer: “Terei misericórdia com quem eu quiser ter misericórdia,” ou seja, com o que crê em Jesus. “Assim, pois, não é do que deseja, nem do que corre,” o escolher as condições sob as quais encontrará aceitação, “mas de Deus, que mostra misericórdia;” que não aceita o pecador por nenhuma outra forma, a não ser por um gesto de seu livre amor, de sua bondade imerecida. “Por isso tem misericórdia de quem Ele quiser ter misericórdia,” isto é, daqueles que crêem no Filho de seu amor; “e a quem Ele quer,” isto é, àqueles que não crêem, “Ele os rejeita,” abandonando-os, afinal, à dureza de seus corações.
8. Podemos, entretanto, humildemente conceber uma razão, em virtude da qual Deus fixou essa condição: “Se creres no Senhor Jesus Cristo, tu serás salvo.” Esta razão serve para tirar ao homem todo motivo de orgulho. O orgulho havia destruído os próprios anjos de Deus; havia precipitado no abismo “a terça parte das estrelas do céu.” Foi, igualmente, possuído, em grande medida, desse mesmo sentimento, que, tendo dito o tentador: “Sereis como deuses,” Adão caiu de sua firmeza, trazendo ao mundo o pecado e a morte. Foi, portanto, um exemplo de sabedoria digno de Deus, indicar semelhante condição de reconciliação àquele transgressor e à sua posteridade, condição que efetivamente humilha, rebaixa até o pó. Tal condição é a fé, admiravelmente apta a preencher tal finalidade; porque, o que se chega a Deus movido pela fé, deve fixar os olhos somente em sua própria maldade, em sua culpa e desamparo, sem dar a menor atenção a qualquer suposto bem que haja em si mesmo, a qualquer virtude ou a qualquer justiça própria. Deve apresentar-se como simples pecador, interna e externamente, destruído por si mesmo e condenado, nada levando a Deus, senão somente impiedade; nada reivindicando como sua possessão, a não ser pecado e miséria. Só assim, neste estado, quando sua boca se cala e ele se apresenta diante de Deus como culpado, é que pode olhar para Jesus, como a única e cabal propiciação pelos seus pecados. Somente assim pode ser achado pelo Senhor, recebendo então a “justiça que é de Deus mediante a fé.” Ímpio que ouves ou lês estas palavras: tu, vil, desesperado, miserável pecador! Intimo-te, diante de Deus, o Juiz de todos, a ires direito a Ele, com toda a tua impiedade. Toma cuidado em não destruíres a tua própria alma, alegando tua maior ou menor justiça. Vai como injusto, culpado, perdido, destruído, merecendo o inferno e já para ele se inclinando; e então acharás graça à sua vista e saberás que Deus justifica o ímpio. Nesta qualidade serás levado ao sangue de aspersão, levado como perdido, abandonado, condenado pecador. Olha para Jesus! Ele é o Cordeiro de Deus, que tira teus pecados! Não alegues obras, nem justiça de tua parte; não apresentes humildade, nem contrição, nem sinceridade. Absolutamente! Isso na realidade seria negar o Senhor que te resgatou. Não! Menciona somente o sangue do pacto, o resgate pago pela tua alma orgulhosa, obstinada e pecadora. Quem és tu, que vês agora e temes tua impiedade íntima e exterior? Tu és o homem! Desejo-te para meu Senhor! Ambiciono-te para filho de Deus pela fé! O Senhor precisa de ti. Tu que temes estar destinado ao inferno estás, na realidade, destinado a crescer na glória de Deus, na glória de sua livre graça, justificando o ímpio e o que não possuía obras. Oh! Vem depressa! Crê no Senhor Jesus, e tu, sim, tu, serás reconciliado com Deus!